Introdução: O órfico ofício
O poema que aqui se apresenta não é novo, apenas levou o seu tempo para se estabilizar. É um ofício difícil, o das palavras, que se devem encontrar numa precisão infalível, ultrapassando obstáculos temporais e geográficos. Quis o destino que fosse em Itália, no dia 16 de junho, que esse encontro se tenha tornado possível. E falo de destino porque hoje passam-se 24 anos da morte de David Mourão-Ferreira, o mestre a quem devo este poema e não só.
Há alguns anos, lendo o seu poema Pele, apercebi-me de uma dimensão sensorial única que me preenchia. A sensação visual de quem observa uma obra de arte, quer ela seja uma fotografia, um quadro ou um corpo. A sensação auditiva, um poema que nasce para ser dito, que obriga a voz. A sensação táctil, de quem toca delicadamente e sente nos poros esse contacto. Todas estas sensações que um poema tão breve me brindava ensinou-me muito sobre poesia, sobre o verdadeiro valor da palavra. Queria escrever um poema que pudesse ser sensitivo a esse ponto, mas um poema que também obrigasse a dizer, como um grito. Um poema que fosse possível como cena de um filme, como capítulo de um romance. Um Poema como os de David. A ele devo-lhe as sensações, a ele devo-lhe o ritmo, a ele devo-lhe a forma e a tradição. A ele devo-lhe os ensinamentos da palavra.
Apercebemo-nos que este órfico ofício é uma constante pesquisa, uma verificação que nunca termina. Mas é graças a mestres como David que o caminho é percorrido sem hesitação, sabendo que ao nosso lado temos as suas palavras e a sua constante presença. Eterna.
I
Em tempos conhecia o teu corpo
com a assustadora vontade do desejo
Conhecia as cores e as formas esquecidas
do meu corpo no teu corpo infinito
há homens que sabem imortalizar uma fotografia
No reflexo vive a loucura
sob uma leve neblina vivem as sombras
o estilhaço do amor perpétuo as tintas
das madrugadas ébrias onde me perdi ao teu encontro
e se fosse possível fotografar a noite?
Conto-te o meu rosto com pormenor de estrelas
traz o pedaço de vidro cortante primeiro sangue
onde se apagam as palpitações onde
os olhos vazam paisagens incendiadas onde
as palavras terminam em gume de estilhaço
Nesses tempos
sei que a felicidade minha não era
um mero reflexo da melodia
mergulhada na beleza venenosa do sonho
Um movimento cortante e perdem-se os homens
que navegam indeterminadamente naquele preto e branco
ofuscado pela sublime escuridão do quarto
Escrevia-te cartas
Bebia do luminoso silêncio a violência das imagens
E digo-te
Bebe do meu sangue e fotografa a eternidade
II
Conservas na memória o primeiro papel
escrito em forma de moldura O espelho
guarda em si o gélido inverno os versos despidos
a mutação do tempo na tua pele em mim
Haverá no mundo um retrato da luz
a paixão pela imortalidade estática da vida
um flash na noite distinguindo as suas criaturas
e na lua pernoita a fotografia do que fui Serei
apenas a palavra que narciso gritou ao espelho
A palavra desliza no teu corpo
Escrevo em verso livre como se nos teus seios o fizesse
Nua deitada entre os estilhaços do grito
resta a sombra da cidade a lenta
filtração dos sons perceptíveis da insónia
a imagem fragilizada no desejo imóvel
O meu corpo será sempre o nome do horizonte
o teu corpo o teu corpo O teu corpo
Depois da metamorfose o seu tempo
III
Quis o tempo do teu corpo sentir ausência
na longitude da matéria quis antes desvanecer
perante o areal perante a excitação de um último
copo de vinho seduzido nos teus olhos
Nem só de amor se enchem os pulmões da terra
Que importa se o dia nasceu já velho e chovia
naquela memória de homens solitários vivendo
do mar do seu eterno perdão
da morte domesticada na aurora da vida
dos beijos dos olhares fantasiosos
descolorados nas letras ensinadas ao pecado
Ouve os ruídos que circulam no teu sangue
despedindo-se dos barcos que transportavam
o sonho obsessivo da melancolia
Deixa viver a metáfora que carregas a ilusão
da paixão pelo mar pela vida pelo prazer
Deixa o outono despertar mais uma vez sentido
a dor em cada poro da nossa pele Em cada
gota de poesia sente-se o grito
Ouve ouve Houve por fim o erguer do teu ser És
tudo aquilo que um dia se escreverá
Rui Alberto Costa
Bari, 2020